UMA CASA SOB O SOL DA TOSCANA
A simplicidade é libertadora. Quando decidi passar um mês na região italiana da Toscana, eu tinha essas palavras da escritora americana Frances Mayes na cabeça. Antes de embarcar, acabei relendo o belo Sob o Sol da Toscana e soube também que a autora estava com um novo livro na praça, Every DAy in Tuscany, em que continua a narrar suas descobertas nesse pedaço tão especial da Itália. Em Sob o Sol da Toscana, Francês compra uma propriedade abandonada, chamada Bramasole, nas cercanias de Cortona, uma cidade que já existia na Antiguidade. Eu, sem grana, não tinha a menor condição de fazer isso. O que queria mesmo era viver o dolce far niente de uma das mais lindas regiões do mundo. Saborear, sem ir à falência, o melhor da culinária local, inebriar-me com os aromas dos mercados, os sons das ruas, a visão extática dos enormes campos dourados de feno, dos girassóis ad infinitum ao redor das estradas. E, claro, deixar-me estar em contemplação silenciosa das obras de arte espalhadas em todo canto – Florença, a capital da Toscana, é também a capital do Renascimento, afinal. Como Frances Mayes, eu queria viver entre essa gente capaz de fabricar o próprio azeite e que passa horas à mesa na companhia de amigos saboreando um delicioso e aromático vinho Brunello de Montalcino. Para usar as palavras da escritora, “a Itália me chamava”. E eu, que ansiava por essa simplicidade libertadora, não via a hora de colocar meus pés no país. Uma vez lá, a memória e muitas passagens de Sob o Sol da Toscana me acompanharam durante 32 dias.
A escada sobe três andares com um gradil artesanal de ferro forjado, cujas curvas simétricas conferem um pouco de ritmo à subida. Meu orçamento era curto, e meu desejo de viver cada segundo dos 32 dias que teria na Toscana, intenso. Minha Cortona era a bela Florença; minha Bramasole, um predinho do século 16, o Brunelleschi – sim, o mesmo nome do artista renascentista -, onde aluguei um apartamento de um quarto, bem ajeitadinho, que descobri num site. O melhor: ficava a poucos passos do Duomo. Bella posizione e belo preço também: paguei cerca de EUR 30 por dia. E era para lá, antigo estúdio de pintores há séculos, que eu voltava feliz da vida no fim de cada giorno.
A Toscana atrai escritores e outros artistas desde muito antes de Frances Mayes. Tchaikovsky, Goethe e Stendhal, para citar apenas três, tiveram passagens cruciais por Florença. O caso de Stendhal é curioso. Em 1817, o escritor francês entrou na Basílica di Santa Croce, sentiu-se tonto, teve palpitações e quase desmaiou. A partir dali, quem quer que se expusesse a uma overdose de obras de arte e apresentasse os mesmos sintomas seria diagnosticado com a “Síndrome de Stendhal”. Mas minha autora de cabeceira, ou melhor, de mochila, seguia sendo Frances. Não só minha. Em vários momentos topei com gente com os livros dela em praças, estações de trem, restaurantes.
È possível que os brasileiros venham à Toscana no embalo de algo bem mais popular, a novela Passione, de Silvio de Abreu. “A Toscana tem paisagens magníficas e é ainda uma tentação gastronômica”, disse o autor; que ainda indicou um restaurante em Siena. Eu não encontrei nenhum global na Toscana – e na verdade nem pretendia. Queria era viver o dia a dia dos florentinos e conhecer (ou rever) outras gemas próximas, como Siena e San Gimignano. Como fazia uma viagem barata, andei de trem e ônibus, transportes muito confortáveis na Itália e que significaram uma bela economia.
Estar plenamente acordada quando o céu fica de um coral riscado de rosa forte, echarpes de névoa flutuam pelo vale e os canários silvestres cantam. Nos lugares que amamos, viajar sem pressa é tudo o que se quer. Eu não tinha de limpar; consertar ou investir na minha Bramasole, mas também me sentia completamente em casa no Brunelleschi. Despertava todos os dias com o canto dos pássaros no terraço do vizinho (ritual que se repetia também nos fins de tarde) e durante o dia acompanhava o dobras dos sinos do Duomo de hora em hora. Adorava acordar e sair a desbravar aquelas ruelas medievais, sentir o perfume das ervas e dos queijos misturados aos das flores nos mercados, contemplar cada escultura espalhada pela Piazza della Signoria ou escondida numa piazza menos famosa, deleitar-me com as obras de arte da Santa Croce ou com a tela O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, aquela em que a deusa do amor aparece sobre a concha, na Galleria degli Uffizi.
A vida diária é um prazer. Buongiorno, dizia, ainda que com seu jeito carrancudo, o vendedor da banca de jornal em frente ao meu apartamento. Era apenas uma única palavra, pronunciada daquele jeito duro dos italianos, mas contribuía para a sensação de lar, de viver naquele lugar. Da porta, o destino seguinte podia ser o Mercato San Lorenzo, com suas barraquinhas de bolsas ou os estandes de queijo pecorino; a Galleria dell’Accademia para admirar o Davi mais uma vez; ou atravessar a Ponte Vecchio em busca de um gelato no outro lado do Rio Arno para então subir a ladeira até chegar à escadaria da Chiesa di San Miniato al Monte para ver a cidade ainda mais do alto. Confesso que às vezes abandonava Florença, mas era uma traição ligeira. Pegava um trem para as cidades que ficavam a no máximo duas horas dali, como Pisa, Lucca, Assis, Arezzo, Viareggio, Siena ou San Gimignano. Ao fim do dia, contudo, acabava sempre por voltar ao Brunelleschi.
As casas em tons ocre e pastel ainda formam uma curva ao longo do rio como se fossem uma aquarela de si mesmas. A Toscana viveu sua época de ouro entre os séculos 13 e 14, com o apogeu dos Médici. A família de banqueiros, políticos e religiosos dominou a vida política, social e cultural. Quatro Médici foram papas: Pio IV, Clemente VI, Leão X e Leão XI. Lorenzo de Médici, que também era poeta, foi o grande mecenas das humanidades do Renascimento e foi ali que se desenrolou um dos mais criativos períodos de toda a nossa história – de descobertas sobre o homem, o mundo e a natureza por meio das obras de gênios como Da Vinci, Giotto, Boticelli, Michelangelo e Brunelleschi. E cada uma de suas cidades guarda reminiscências desse período, numa identidade própria e incontestável. A natureza também foi pródiga com a Toscana. As tão peculiares colinas em sucessão são lindas de se ver da janela do trem ou do ônibus. Delas partem estradas sinuosas em caminhos que parecem sempre desembocar em algum vinhedo. Vez ou outra surge um vilarejo, verdadeiras aldeias de pedra, permeadas sempre de flores. E aquela Cortona, a verdadeira Cortona de Frances Mayes, lembra? São 80 quilômetros que a separam de Florença ou, traduzindo o percurso, basta uma hora de trem até Arezzo e então meia hora de ônibus até lá. A cidade continua igualzinha às descrições do livro: pequena, com a pracinha central regendo a vida diária. A vila, de pouco mais de 20 mil habitantes e cheia de ladeiras, palácios e igrejas medievais, é uma jóia do tempo dos etruscos, povo que antecedeu os romanos. Vale também conhecer Arezzo, essa terra de antigos cavaleiros medievais, igrejas góticas, anfiteatros romanos e fortalezas. Como fica em plena montanha voltada para o Rio Arno, por suas ruelas sinuosas passam vespas e caminhonetes com a mesma desenvoltura – algumas desembocam na Piazza Grande, em restauração já há algum tempo. Arezzo ganhou fama depois que o ator e diretor italiano Roberto Benigni filmou ali grande parte de seu premiado A Vida É Bela. Num outro dia, resolvi misturar três cidades na mesma viagem: Pisa, Lucca e Viareggio. As conexões de trem são ótimas, com horários perfeitos, o que permite visitar as três em sequência. Eu tinha visto Pisa em 2002, às 5 e méis da tarde de um inverno, quando já era noite escura; vê-la às primeiras horas da manhã teve um gosto diferente. A torre ainda está inclinada, os turistas tiram fotos inclinados para um lado ou para outro diante dela. Cheguei à Piazza dei Miracoli quando a cidade despertava e aproveitei para entrar de novo na catedral e no batistério, onde o ingresso custa EUR 4 – preferi economizar os EUR 15 da subida na torre, que eu já conhecia. Dali saí a perambular pela beira do rio, xeretar o Mercato Centrale e fui embora quando os primeiros grupos de turistas começavam a chegar. Menos de uma hora depois eu já pisava em Lucca e as boas-vindas foram ainda com o dia ensolarado. A bela Piazza San Michele, lotada de restaurantes de qualidade duvidosa e lojinhas de suvenires inflacionadas, já foi palco de um antigo coliseu (o Único vestígio é mesmo o formato). Para fechar o dia, fui a Viareggio, na bela região da Versília, a meia hora de Lucca. O lugar anda ganhando ares de Riviera nos últimos anos, com endinheirados atracando seus iates por ali. É a cidade onde Giacomo Puccini viveu 30 anos e por isso não é de estranhar que a música do autor dos óperas Tosca e La Bohème esteja presente em todo o lugar, não só na casa-museu Puccini como na Ópera Municipal a céu aberto. Pela bela Promenade, à beira-mar, muitos jovens caminham no fim de tarde. Como disse a local Eloísa Taverni, que aproveitou para fazer publicidade gratuita de sua cidade enquanto nós duas curtíamos o pôr do sol: ”Para mim, não há no mundo paraíso como este”.
Um comentário:
Poxa...Adorei esse post...Meu maior sonho há anos é conhecer a Itália...Em princípio ,bem lá distante, era pq sou católica e creio ser o sonho de todos os católicos ir à Itália pra conhecer o Vaticano, etc., mas hoje, principalamente depois de ter assistido ao filme "Sob o Sol de Toscana" e visto alguns videos mostrando esse pedacinho de chão...Fiquei com a firme idéia e propósito de algum dia , antes de morrer, conhecer a itália sim, mas em especial , Toscana...Não sou mais uma jovenzinha, mas tenho a juventude dentro do coração e como dis nesse texto, falando com minhas palavras: "há um apelo que nos chama para Toscana"....Grata por esse espaço
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